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O Código Florestal e os Rios Intermitentes

O novo Código Florestal continua gerando intensa polêmica no Congresso Nacional, opondo ruralistas e ambientalistas.

A polêmica mais recente ocorreu durante a sessão da Comissão Especial do Congresso que analisava a Medida Provisória do Código Florestal  no dia 8 de agosto.

Durante a citada sessão foi aprovada uma emenda que estabeleceu o seguinte: os rios intermitentes não manterão o status de Áreas de Proteção Permanente (APP) e, assim, não será necessário promover a recuperação ou recomposição da mata ciliar degradada em suas margens.

A emenda foi proposta pelo Deputado Federal Abelardo Lupion (DEM – PR).

A emenda aprovada é, segundo nosso juízo, totalmente descabida e ingênua na medida em que coloca em risco as bacias hidrográficas e ecossistemas frágeis da Região Nordeste, comprometendo a enorme população que neles habita.

 Inicialmente destacaremos alguns aspectos vinculados à questão dos chamados “rios intermitentes” e sua importância.

Considerando a relevância do tema e o caráter técnico a ele vinculado utilizaremos o trabalho desenvolvido pelo Grupo Ecologia de Rios do Semiárido Departamento de Sistemática e Ecologia, Universidade Federal da Paraíba, denominado “Ecologia de Rios Intermitentes Tropicais”, coordenado por MALTCHIK, L.

Os principais elementos contidos no referido trabalho podem ser resumidos nos seguintes pontos:

a)     No Brasil, aproximadamente 10% do território está classificado como região semiárida.

b)    Aproximadamente 23 milhões de pessoas estão distribuídas na região semiárida (Ab’Saber, 1994/95), tornando os rios intermitentes, ecossistemas fundamentais para as estratégias de sobrevivência da população humana local (Maltchik, 1996a).

c)     A principal característica hidrográfica do Semiárido brasileiro é o caráter intermitente de seus rios, diretamente relacionada com a precipitação da região.

d)    Os rios intermitentes são fundamentais para a economia regional, influenciando o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência e potencializando sua capacidade de maximizar os processos adaptativos.

Os rios intermitentes integram os ecossistemas da Região Nordeste e precisam ser protegidos para evitar um colapso na pouca oferta de água àqueles milhões de nordestinos.

É necessário destacar que os rios não são meras mangueiras que transportam água de um ponto a outro de nosso amplo território.

Os rios, ao contrário, atuam como verdadeiros corpos vivos permitindo as trocas entre os ecossistemas e a manutenção dos processos bióticos.

A redução do volume de água de um rio representa uma limitação adicional aos nossos ecossistemas já tão impactados.

Em outras palavras: um rio pode morrer, desaparecendo de vez.

Pode parecer incrível a um parlamentar do Paraná, um Estado que conta com rios perenes de grande porte, agricultura intensiva em capital e o suporte do gigantesco aquífero Guarani, que um rio possa morrer…

Mas os rios morrem. Trata-se de um fenômeno que afeta rios perenes e rios intermitentes sem preconceito e já vem sendo observado em Minas Gerais.

Quando a mata ciliar não sofre recomposição adequada é possível observar a ocorrência dos seguintes reflexos:

  • Evidente alteração nos ciclos hidrológicos da bacia hidrográfica, alongando períodos de seca e/ou de cheias;
  • Redução do volume disponível das águas;
  • Degradação na qualidade da água;
  • Acirramento dos conflitos de uso pelos recursos hídricos;
  • Limitações às atividades agrícolas e industriais em uma área extremamente carente;
  • Comprometimento da fauna e flora;
  • Risco de erosão do solo nas margens dos rios intermitentes e processo de assoreamento posterior; etc.

No caso do Semiárido nordestino a situação é ainda mais grave dada a fragilidade dos ecossistemas locais e as conhecidas limitações de ordem econômica vigente.

Os impactos advindos da desobrigação quanto à reposição da mata ciliar degradada nos rios intermitentes são tão graves que podem amparar, inclusive, futuras Ações de Inconstitucionalidade (AI) junto ao Supremo Tribunal Federal, caso o novo Código Florestal venha a ser aprovado com a inclusão desta emenda.

A seguir destacam-se alguns dispositivos legais que, salvo melhor juízo, devem ser observados de modo a garantir a nossa necessária segurança jurídica:

a)     Constituição Federal de 1988

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

Entendemos que a desobrigação de recomposição das matas ciliares às margens dos rios intermitentes provocará a sua gradual destruição, comprometendo fauna e flora e a preservação dos processos ecológicos essenciais.

Devemos considerar, ainda, que a morte de um rio representa um impacto ambiental não mitigável, o que contribuirá para a completa degradação do ecossistema.

Desta forma é necessário analisarmos os impactos decorrentes da emenda ao novo Código Florestal sob a luz de outros dispositivos infraconstitucionais a seguir destacados.

b)    Lei n.º 9.433/97 – Política Nacional de Recursos Hídricos

“Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I – a água é um bem de domínio público;

II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;

IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas.”

A eventual aprovação do novo Código Florestal contendo em seu texto final a referida emenda em comento reduzirá a oferta de água em uma região reconhecidamente sujeita aos déficits hídricos.

A redução na disponibilidade de água nos rios intermitentes desconsidera o seu valor em termos econômicos e sociais.

Além disso, a redução na oferta de água se traduz na intensificação dos conflitos de uso, o que dificultará sobremaneira o uso múltiplo daquele recurso.  Assim, eventuais atividades econômicas (indústrias, curtumes, etc.) terão de reduzir seu consumo de água em favor das populações atingidas, ampliando os problemas socioeconômicos.

O art. 2º da Política Nacional de Recursos Hídricos contempla os objetivos associados àquela política:

“Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

I – assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

II – a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;

III – a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.”

Em razão dos reflexos decorrentes da desobrigação de recomposição das matas ciliares às margens dos rios intermitentes entendemos que o Poder Público não poderá assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos.

Haverá, repetimos, uma considerável redução no volume e qualidade das águas nos rios intermitentes da Região Nordeste, impedindo sua utilização racional e integrada.

A referida redução no volume das águas trará, ainda, maior dificuldade na implantação de novos projetos que necessitem daqueles recursos hídricos, uma vez que a Agência Nacional das Águas (ANA) não concederá a indispensável Outorga de Uso, evitando o acirramento dos conflitos de uso.

c)     Lei n.º 9.605/1998 – “Lei dos Crimes Ambientais”

A denominada “Lei dos Crimes Ambientais”, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, estabelece, dentre outros, os crimes contra a flora:

“Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação:

Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.”

Não é necessário insistir na relação existente entre a disponibilidade de água e a manutenção dos ecossistemas, em especial no que concerne aos recursos da flora: sabemos que a ausência do recurso hídrico é a sentença de morte para as espécies vegetais, constituindo-se em uma porta aberta para a degradação do ecossistema como um todo.

É necessário compreendermos a relação intrínseca existente entre a fauna, a flora e os recursos abióticos, tais como a água, o clima e o solo.

Todos esses componentes estão presentes e atuam de modo indissociável, assim, qualquer alteração em um daqueles elementos se traduz em colapso potencial do ecossistema.

Conclusão:

A emenda aprovada pela bancada ruralista durante a análise da Medida Provisória do Código Florestal é equivocada e cruel para com as populações mais carentes da Região Nordeste.

Os rios intermitentes precisam ser protegidos e preservados de modo a manter os ecossistemas nos quais estão inseridos.

Seria aconselhável, inclusive, a adoção de medidas adicionais que possam garantir um aumento em sua vazão para atendimento das necessidades crescentes da população.

marceloquintiere@gmail.com

MQuintiere@twitter.com

Bibliografia:

Brasil,  Constituição Federal de 1988.

_____, Lei n.º 9.433/97

_____, Lei n.º 9.605/98

Maltchik, L. 1996a. Nossos rios temporários, desconhecidos mas essenciais. Ciência Hoje, 21:64-65

Ab’Saber, N.A. 1994/95. No domínio das caatingas. Em pp. 37-46, S. Monteiro e L. Kaz (eds.),

Caatinga. Rio de Janeiro: Livroarte Editora.