Após quatro anos de vigência e muitas controvérsias a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) chega a uma encruzilhada que pode vir a comprometer sua eficácia quanto à correta gestão dos resíduos sólidos no Brasil.
A PNRS trouxe diversas inovações que poderão aperfeiçoar a gestão dos resíduos sólidos no Brasil, dentre as quais podemos destacar:
- Responsabilidade Compartilhada;
- Incentivo à Não Geração, Redução, Reutilização e Reciclagem;
- Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos;
- Estímulo à implantação da Coleta Seletiva;
- Estímulo à Logística Reversa;
- Estímulo à Formação de Consórcios Municipais;
- Elaboração dos Planos de Gestão de Resíduos nas Esferas Administrativas;
- Elaboração dos Planos de Gerenciamento de Resíduos no âmbito da Iniciativa Privada;
- Incentivo à Implantação, Formalização, Aparelhamento e Capacitação de Cooperativas de Catadores de Resíduos;
- Estabelecimento de Prazo para Desativação dos Lixões.
O prazo final para a desativação dos lixões, um dos pontos mais controversos da PNRS, venceu no dia 2 de agosto e, para nossa tristeza e perplexidade, mais de 60% de nossos municípios ainda não adotaram medidas concretas para solucionar essa questão.
A prevalência dos lixões demonstra que grande porcentagem do lixo gerado diariamente não recebe o tratamento adequado, representando inconsistências e fragilidades da gestão pública dos resíduos sólidos no Brasil.
É interessante observar que a “solução dos lixões” independe do tamanho do município ou de sua capacidade financeira, sendo possível observar lixões antigos em operação ou já desativados em praticamente todos os nossos municípios.
Além disso, a presença de lixões significa maiores riscos para a saúde humana e comprometimento dos ecossistemas, com maior probabilidade de degradação da qualidade do ar, solo e água.
O lixão traz inúmeros problemas socioeconômicos e ambientais, dentre os quais se destacam:
- Proliferação de vetores de doenças;
- Produção de chorume e contaminação do solo e da água subterrânea;
- Geração de metano, gás derivado da decomposição da matéria orgânica e considerado como um dos principais responsáveis pelo aquecimento global;
- Marginalização do homem;
- Contaminações por metais pesados, etc.
Devemos considerar, também, que o depósito direto de resíduos em lixões consiste em uma prática obsoleta em termos tecnológicos, propiciando desperdícios financeiros, uma vez que simplesmente enterra grandes volumes de resíduos que poderiam, alternativamente, ser reciclados ou transformados em combustível.
Em razão dos diversos impactos negativos destacados a Política Nacional de Resíduos Sólidos estabeleceu a obrigatoriedade de se promover a desativação dos lixões até agosto de 2014.
O problema é que a simples desativação dos lixões não é suficiente para solucionar o problema da contaminação.
Ao longo das décadas os lixões se transformam em passivos ambientais, ou seja, perigosos depósitos que inviabilizam o uso seguro da área.
Em outras palavras, a simples desativação da área ocupada com o lixão, impedindo o depósito de novos materiais, não garante a melhoria nas condições ambientais, uma vez que o material ali depositado continuará a contaminar o solo, água e atmosfera através da emissão continuada de chorume e metano.
Seria mais correto, data vênia, pensarmos em “erradicação” dos lixões ao invés de considerarmos apenas a sua “desativação””.
A erradicação dos lixões pressupõe a observância e o cumprimento de etapas para o completo cumprimento da lei, a saber:
- Desativação:
Etapa onde não se permite mais nenhum depósito de resíduos/rejeitos;
- Isolamento:
A área é submetida ao processo de encapsulamento ou à mineração do lixão de forma a minimizar a geração de efluentes líquidos e/ou gasosos (chorume e gás metano respectivamente), bem como a retirada dos resíduos e rejeitos, configurando a limpeza da área;
- Descontaminação:
A área é submetida ao processo de descontaminação após a retirada dos resíduos/rejeitos. O objetivo básico consiste em minimizar os riscos de contaminação dos ecossistemas, bem como os impactos negativos sobre a saúde humana.
De quem é a culpa por essa situação?
De início devemos considerar que a criação, perpetuação e expansão dos lixões é fruto do descaso e incompetência técnica de sucessivos governos que, numa visão míope, nunca consideraram a necessidade de recuperar aquelas áreas degradadas e encontrar soluções tecnológicas que pudessem reverter o quadro caótico a seu favor.
Os argumentos colecionados ao longo das décadas apontam as mazelas de sempre: falta de recursos orçamentários, ausência de vontade política, as tecnologias inadequadas, necessidade de introduzir a coleta seletiva em moldes mais eficazes, dificuldades para conscientizar a população, quadro técnico municipal pouco capacitado, etc.
O vínculo entre o dano ambiental e o dever de promover o seu ressarcimento está amparado na chamada Teoria Objetiva da Responsabilidade, segundo a qual o agente poluidor é obrigado a arcar com os custos de indenizações e reparação dos danos que causou ao meio ambiente e a terceiros, independentemente de culpa.
Nesse sentido destacamos o que estabelece a Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA), a Constituição Federal e o Código Civil de 2002:
1. PNMA – Lei n.º 6.938/81 – Art. 14, § 1º:
“Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.
2. CF/ 1988 – Art. 225, § 3º:
“As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
3. Código Civil de 2002 – Lei n.º 10.406/2002 – Art. 927, § único
“Haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Isso significa que os municípios são responsáveis pela criação e expansão dos seus lixões, seja em razão do pagamento de elevadas somas ao longo de décadas a título de coleta e disposição dos resíduos, seja pela sua reconhecida omissão na busca de soluções para reduzir os impactos negativos.
Em síntese, o município é o proprietário dos resíduos uma vez que pagou muito dinheiro para estocá-lo em condições totalmente inadequadas sob o ponto de vista ambiental, colocando em risco os ecossistemas e a saúde humana.
O descumprimento do prazo legal para desativação dos lixões pode ensejar a aplicação de multas à administração municipal, além do enquadramento do prefeito e demais responsáveis pela administração dos resíduos na lei de crimes ambientais (Lei n.º 9.605/1998).
Assim, o prefeito e demais responsáveis poderão sofrer penas de detenção e, cumulativamente, ser considerados inelegíveis nas futuras disputas para cargos eletivos.
Mas a culpa desse estado de coisas não se limita apenas aos prefeitos. A culpa deve ser repartida com as associações de municípios e com as administrações estaduais.
Entendo que as associações de municípios prestaram um grande desserviço ao país na medida em que se empenharam para ampliar os prazos estabelecidos em lei, sempre sob a alegação da falta de recursos, etc.
Em nenhum momento houve uma mobilização para encontrar soluções mais eficientes ou buscar novas tecnologias.
Da mesma forma entendo que cabe uma parcela de culpa às administrações estaduais na medida em que pouco fizeram para conscientizar a população e os gestores municipais quanto à gravidade e complexidade do problema.
Essa postura distante dos Estados denota descompromisso social e colide com a chamada “responsabilidade compartilhada”, outra inovação introduzida pela PNRS, que obriga a todos, sociedade, setor público e as diversas esferas administrativas a trabalhar em conjunto na solução dos problemas associados à gestão dos resíduos sólidos.
Uma solução razoável seria aglutinar municípios em consórcios públicos com vistas a otimizar a gestão de resíduos, reduzindo custos operacionais e administrativos, além de garantir grandes volumes de resíduos recicláveis que poderiam ser encaminhados às indústrias de reciclagem (com geração de emprego, renda, tributos e qualificação da mão de obra local).
Perdemos um tempo precioso na condução dessa questão e os problemas se acumularam.
Agora resta-nos a esperança de que o Ministério Público e os órgãos de fiscalização adotem medidas legais e administrativas junto aos municípios inadimplentes, objetivando a punição dos responsáveis.
Se essas medidas coercitivas não forem adotadas teremos dado um enorme passo para que a PNRS se transforme um uma lei que “não pegou”.