O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG) representa o maior acidente ambiental com mineradoras no mundo em toda a história, em especial se considerarmos as mais de 300 vítimas, mortas pela incompetência da mineradora.
No artigo anterior destacamos algumas considerações acerca da atuação da Vale e como aquele conjunto de falhas e inconsistências acabou desaguando na tragédia (alteamento da barragem a montante, construção de prédios logo abaixo das barragens, ausência/inoperância de um sistema de alarme, etc.).
Na realidade estamos diante de um caso clássico de passivos ambientais, um tema ainda pouco explorado e que merece a nossa atenção e mobilização.
O passivo ambiental pode ser definido da seguinte forma:
De acordo com o IBRACON – Instituto dos Auditores Independentes do Brasil, o passivo ambiental consiste no valor dos investimentos necessários para reparar toda a agressão que se pratica ou praticou contra o meio ambiente.
Conforme destaca MALAFAIA, a essência do passivo ambiental está no controle e reversão dos impactos das atividades econômicas sobre o meio natural, envolvendo, portanto, todos os custos das atividades que sejam desenvolvidas nesse sentido.
O passivo ambiental representa toda e qualquer obrigação destinada, única e exclusivamente, a promover investimentos em prol de ações relacionadas à extinção ou amenização dos danos causados ao meio ambiente, inclusive os valores direcionados a investimentos na área ambiental (MALAFAIA).
Os passivos ambientais existem aos milhares em nosso país, na forma de barragens de mineração, tanques de combustíveis obsoletos, plantas industriais abandonadas, lixões ou barragens de resíduos industriais, dentre outras.
A existência de uma barragem de resíduos de mineração daquele porte e com alteamento de cota à montante é, por definição, um passivo ambiental pois:
- É derivado de uma atividade econômica de grande porte;
- Os resíduos representam risco elevado em caso de rompimento da barragem, seja pelo choque físico de uma onda gigante com milhares de toneladas de peso ou pela presença de componentes tóxicos;
- A legislação ambiental brasileira é clara quanto à obrigatoriedade de reduzir ou minimizar aquele risco ambiental, cabendo ao proprietário da operação mineradora o dever de agir.
A simples construção de grandes barragens e o seu alteamento posterior com a técnica à montante (mais barata, porém obsoleta) não é suficiente para redução dos riscos associados ao empreendimento.
Ao contrário! São bombas relógio que crescem continuamente, oferecendo maior risco.
Quando ocorre um rompimento nessas barragens o que se vê é uma tragédia humana e ambiental, acompanhada de fortes impactos econômicos.
Vejam bem: a presença de uma barragem de grande porte de uma mineradora é um passivo ambiental cujo custo de redução/controle e eliminação cabe ao seu proprietário/operador.
Entretanto, quando a barragem rompe temos um dano gigantesco que envolve uma área muito maior do que a barragem inicial, chegando a algumas centenas de quilômetros nos casos dos rios contaminados, além de algumas outras dimensões importantes, tais como a biodiversidade, a poluição das águas e do solo, a contaminação por metais pesados, a paralisação temporária ou a destruição permanente de atividades econômicas, etc.
Assim, após o rompimento, não se trata mais de um passivo ambiental confinado em uma área pequena (a barragem), mas de um verdadeiro monstro que vai exigir um volume de recursos muito maior do que aquele inicialmente necessário para redução do passivo ambiental representado pela barragem.
Esse custo financeiro pode superar a casa de 7 a 10 bilhões de reais, um montante significativo até mesmo para uma empresa do porte da Vale, incluindo:
- A indenização às famílias das vítimas;
- O ressarcimento aos diversos empresários cujas atividades foram prejudicadas (hotéis, pousadas, comércio varejista, etc.).
- A indenização aos municípios afetados por danos à infraestrutura e à imagem, bem como os custos decorrentes da mobilização de centenas de bombeiros durante meses, doação de cestas básicas à população;
- A obrigatoriedade de recomposição das áreas afetadas, tais como a calha dos rios, as nascentes soterradas, a supressão da biodiversidade e a contaminação das águas e do solo;
- Limpeza e Descontaminação das áreas afetadas;
- Remoção de famílias;
- Imagem da empresa frente aos mercados consumidores internacionais, etc.
Para entendermos a questão dos custos basta considerarmos a obrigatoriedade legal que a Vale terá que assumir frente à de reparação dos danos ambientais, estabelecida pela Teoria Objetiva da Responsabilidade e demais dispositivos da legislação a seguir destacados:
1. Lei n.º 6.938/81 – PNMA Art. 14, § 1º:
“Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.
2. CF/ 1988, Art. 225, § 3º:
“As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
3. Código Civil de 2002 – Lei n.º 10.406/2002, Art. 927, § único
“Haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
4. Política Nacional de Meio Ambiente – Lei n.º 6.938/81, Art. 4º, VII
Princípio do Poluidor – Pagador
“Art. 4º – A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
(…)
VII – à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos. ”
A Teoria Objetiva da Responsabilidade tem como elementos básicos apenas o dano causado e o nexo de causalidade, não sendo necessário o desenvolvimento de provas ou elementos comprobatórios acerca da culpa do infrator.
Desta forma o processo se torna mais célere, garantindo que os recursos destinados à compensação dos danos vinculados aos acidentes ambientais sejam prontamente obtidos, protegendo de modo mais efetivo o meio ambiente.
Assim, procura-se internalizar nos custos gerais das indústrias os impactos negativos ao meio ambiente, bem como a obrigatoriedade de promover o seu ressarcimento, evitando a sua equivocada socialização pelo conjunto da sociedade.
A Teoria Objetiva da Responsabilidade encontra amparo na conhecida Teoria do Risco Integral:
“Quem recebe os lucros de uma atividade deve estar preparado para assumir os eventuais danos causados a terceiros”.
A identificação e valoração dos danos ambientais representa uma questão muito desafiadora e, muitas vezes, não dispomos de instrumentos de análise precisos.
Vejamos o caso da contaminação das águas e solo decorrente da presença de metais pesados.
A Fundação SOS Mata Atlântica percorreu 2 mil quilômetros de estrada, ao longo de 21 municípios, para analisar a qualidade da água em 305 quilômetros do rio afetados pelo rompimento da Vale, e encontrou dados assustadores, dentre os quais destacamos:
- A turbidez era extremamente elevada;
- Os baixos níveis de oxigênio dissolvido medidos na coluna d’água, a partir de dois metros de profundidade, ultrapassaram limites definidos na legislação nacional e internacional para qualidade da água;
- Grande presença de peixes e animais mortos;
- Destruição de 112 hectares de Mata Atlântica;
- Comprometimento da coleta de água para consumo na Grande Belo Horizonte;
- A concentração de manganês é 30 vezes o limite máximo permitido;
- A concentração de cromo é 19 vezes o máximo permitido;
- A concentração de cobre é 360 vezes o máximo permitido.
A contaminação por metais pesados pode provocar severas contaminações e o comprometimento da qualidade da água subterrânea, do solo agricultável e da biodiversidade e tende a comprometer a capacidade dos ecossistemas de recuperar a sua condição de equilíbrio anterior, denominada de resiliência.
Devemos considerar, ainda, que os metais pesados possuem maior persistência no meio ambiente, sendo mais lenta a sua neutralização.
Muito se fala da contaminação dos ecossistemas por metais pesados, mas quais são os verdadeiros efeitos que esse tipo de resíduo produz?
Como os metais pesados afetam realmente a nossa saúde?
A tabela a seguir destaca alguns metais pesados e algumas de suas aplicações industriais, bem como os eventuais impactos sobre a saúde humana.
Tabela n.º 1: Metais pesados, sua utilização comercial e efeitos observados sobre a saúde humana.
Metais | Utilizações mais comuns | Efeitos sobre a saúde humana |
Alumínio |
Produção de artefato de alumínio, serralheria; medicamentos (antiácidos) e tratamento convencional de água. |
Anemia por deficiência de ferro; intoxicação crônica. |
Arsênio | Metalurgia; manufatura de vidros e fundição, fabricação de munição, ligas e placas de chumbo nas baterias elétricas.
Produção de herbicidas e inseticidas |
Efeitos nos sistemas respiratório, cardiovascular, nervoso e hematopoiético.
Câncer de pele e nos brônquios. |
Cádmio |
Soldas; tabaco; baterias e pilhas; fertilizantes fosfatados; tubos de televisão; pigmentos, esmaltes e tinturas têxteis; resíduos da fabricação de cimento, da queima de combustíveis fósseis e lixo urbano e de sedimentos de esgotos | Distúrbios gastrointestinais e edema pulmonar. |
Cobre | Ingestão de água contaminada pelo metal presente em encanamentos | Febre, náuseas, diarreia |
Cromo | Indústria de corantes, esmaltes, tintas; ligas de aço e níquel; cromagem de metais; galvanoplastia, soldagens; curtume. | Em níveis bronco-pulmonares e gastrointestinais produzem irritação bronquial, alteração da função respiratória e úlceras gastroduodenais. |
Níquel | Baterias; aramados; fundição e niquelagem de matais; refinarias. | Câncer de pulmão e seios paranasais |
Mercúrio | Aparelhos de precisão; iluminação pública, amálgamas, produção de ligas. | Intoxicação do sistema nervoso central;
Febre, calafrios, dispneia e cefaleia, diarreia, cãibras abdominais e diminuição da visão. Casos severos progridem para edema pulmonar e cianose. As complicações incluem enfisema, pneumomediastino e morte. |
Manganês | Inalação de poeira do material na indústria de mineração | Distúrbios neurológicos, como Mal de Parkinson |
Chumbo | Revestimentos, tintas, ligas metálicas, etc. |
Síndrome associada ao sistema nervoso central (alterações sensoriais, perceptuais, e psicomotoras), síndrome astênica (fadiga, dor de cabeça, insônia, distúrbios durante o sono e dores musculares), síndrome hematológica (anemia moderada), síndrome renal (nefropatia não específica, diminuição da depuração da ureia e do ácido úrico), síndrome do trato gastrointestinal (cólicas, anorexia, desconforto gástrico, constipação ou diarreia), síndrome cardiovascular (miocardite crônica, arteriosclerose precoce com alterações cerebrovasculares e hipertensão). |
A conclusão é que essas barragens de rejeitos de mineração são passivos ambientais que precisam ser identificados e controlados/reduzidos, sob pena de causarem severos danos ambientais, sociais e econômicos.
Outro aspecto relevante é que a presença eventual de metais pesados nos resíduos de barragens de mineração pode ocasionar danos à saúde humana e à proteção dos ecossistemas cujos reflexos não são visíveis de imediato.
Em outras palavras, os danos decorrentes de contaminações por metais pesados podem se tornar visíveis muitos anos após a ocorrência de algum acidente, ocasionando mortes e destruição em larga escala, além de um custo financeiro muito mais elevado para seu controle.